terça-feira, 3 de novembro de 2015

CALABAR - Chico Buarque e Ruy Guerra

Quando o bom humor também faz pensar



Por Claudio Pucci

"Calabar" de Chico Buarque e Ruy Guerra, dirigida por Fernando Peixoto, é a mais recente e boa novidade do teatro paulista. Proibida desde 73, quando o mesmo Peixoto dirigia no Rio sua primeira e frustrada montagem, a peça representa agora, encenada no Teatro São Pedro, uma importante afirmação no nosso teatro e da gente que faz, num espetáculo que lembra a todos o óbvio e às vezes esquecido príncípio de que pensamento e bom humor não são incompatíveis. E é divertindo e fazendo rir (bem, não dá para deitar e rolar...) que "Calabar" propõe um estimulante jogo de reflexão.

Mulato sarará, bravo guerreiro, Calabar servia aos portugueses no Brasil Colônia da primeira metade do século 17, onde, como sempre, todo mundo dava sua bicadinha, direta ou indiretamente (espanhóis, ingleses, franceses, holandeses). Acabou virando bandeira, possivelmente por achar que lutando com os holandeses, contra os portugueses, estava defendendo o Brasil, naquele momento. Dançou. Enforcaram o moço, picaram em pedaços, cuspiram, salgaram a terra onde vivia, como fizeram com Tiradentes. Só que Calabar entrou para a História, escrita pelos portugueses como um insuspeitável traidor. Se os historiadores fossem os holandeses, o mulato virava herói. Mas a idéia não é reabilitar a "denegrida" imagem de Calabar, mas sim considerar que traição, como tantas outras coisas que são dadas como "certas", é uma questão de ponto de vista; e que até hoje tem gente sendo sacrificada por não estar de acordo com a "História" que continua sendo escrita pelos dominadores, flagrante minoria.

Mas o espetáculo não fica só no discurso não, e até faz uma antiga postura quando anuncia o intervalo. Tem música, e da boa, já gravada em disco, embora censurada; tem trapalhadas de uma boa chanchada, de um teatro de revista; tem muita mulher bonita, e até completamente sem roupa, um papagaio maluco, um boi voador, um frei também, e um bom elenco, onde ninguém (Tânia Alves é a melhorzinha) sabe cantar, mas fazer, o que se há de? Nesse elenco está Othon Bastos, fazendo dois papéis, o do governador Mathias de Albuquerque e o do príncipe holandês Maurício de Nassau, enviado especial da CIO (Companhia das Índias Ocidentais). E sua presença, segura e brilhante, já seria uma boa razão para se ir ao São Pedro.

Mas não espere perfeição, e o diretor Fernando Peixoto deve ter dado muito upa para minorar e/ou transformar limitações do texto em qualidades do espetáculo. O Chico não gosta que se diga, mas ainda lhe falta (aqui também ao Ruy) mais carpintaria, artesanato teatral - sozinho ou em parceria.

"Calabar" (que tem o subtítuto "O elogio da traição") é melhor que a "Ópera do Malandro", se for comparar. É mais clara e amarrada, embora ainda um pouco confusa e caótica - o que serve aqui ao diretor para montar o painel-salada pretendido. E não se deve esquecer: com esse negócio de censura ficar cortando tudo, pedaços, interditando o feito, tanto com a "Ópera" como com "Calabar", explicitar, enxugar, e tira aqui põe ali, que não há dramaturgo, diretor e ator que dê jeito.

Mas essa gente até que deu (o bom elenco de 20 atores tem ainda Tânia Alves, Sérgio Mambertti, Renato Borghi, Martha Overbeck, Gésio Amadeu, Miguel Ramos, Osmar di Pieri, Elias Andreato, Ariel Moshe, Dadá Cyrino, Édsel Britto, Ina Rodrigues, Luiz Braga, Luis Carlos Gomes, Mercedes de Souza, Samuel Santiago, Wilson Rabelo, Zdenek Hampl e a encantadora Mônica Brant, em cenário e figurinos de Hélio Eichbauer, com direção musical de Marcus Vinícius). E o aviso no palco escrito com letras meio tortas e trôpegas é a melhor legenda, não só para o mulato sarará personagem mas para todos - desde Fernanda Montenegro, Fernando Torres, Tetê Medina, Hélio Ari, Betty Faria (da primeira montagem, interditada), até esse grupo de agora, incluindo a costureira Alice, a camareira Helena e o maquinista Paschoal - que fizeram esse trabalho, e quem mais se identificar com ele: "Calabar é como cobra de vidro (um lagarto de lenda popular): quando se corta em dois ou três, facilmente se refaz."



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